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Ildo Sauer: as “reformas” de Temer só beneficiam o capital financeiro

Na entrevista a seguir, concedida com exclusividade à Hora do Povo, cuja primeira parte publicamos hoje, o ex-diretor executivo da Petrobrás, Ildo Sauer, faz uma análise da situação política do país, caracterizada por ele como catastrófica, e aponta as saídas para a maior crise econômica vivida pelos brasileiros nos últimos tempos. Sauer analisa a greve geral que ocorreu no último dia 28 de abril e diz que é necessário manter unidas as forças que pararam o país, para que “possamos barrar as medidas deste governo ilegítimo contra os trabalhadores”.

Responsável pela área de Gás e Energia da Petrobrás entre 2003 e 2007, Ildo Sauer foi exonerado durante o governo Lula por discordar das condutas tomadas pelo governo à época. Ele explica como as empresas públicas, a exemplo da Petrobrás e da Eletrobrás, foram atacadas pela coalizão política que se formou em 2002 e que visou apenas garantir que o excedente econômico produzido nesses setores caísse nas mãos de grupos econômicos privilegiados, em detrimento do país e da população.

Segundo ele, ao longo dos últimos anos os problemas internos da Petrobrás eram vistos como derivados de “equívocos, de erros, de percepções equivocadas, não imaginávamos que eram intencionais”. Entretanto, destaca, depois das revelações da Lava Jato, “ficou claro que grande parte desses que pareciam ser equívocos, na verdade eram crimes”.

Ildo Sauer é graduado em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestre em Engenharia Nuclear e Planejamento Energético pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e doutor em Engenharia Nuclear pelo Massachusetts Institute of Technology. Atualmente é professor titular da Universidade de São Paulo e Vice-Diretor do Instituto de Energia e Ambiente da USP.

 S.C.

HORA DO POVO: Qual é a sua avaliação do momento político do Brasil, das medidas tomadas pelo governo na área trabalhista e previdenciária? O que achou da greve geral?

ILDO SAUER: O momento que nós estamos vivendo é fruto de uma longa construção, que vem principalmente do neoliberalismo de Fernando Henrique Cardoso e do governo de coalizão comandado pelo Lula e pela sua sucessora, que montou um conjunto de alianças formais e informais. A diferença maior entre o governo de Fernando Henrique, por um lado, e Lula e Dilma, por outro, foi a transparência com que os tucanos anunciaram e se declararam a favor do neoliberalismo. Os governos seguintes mantiveram o neoliberalismo fazendo o discurso contrário.

A grande vantagem com que contou o governo Lula foi a pujança com que a China emergiu no seu processo de industrialização acelerado, que levou ao crescimento dos preços de commodities – produtos agrícolas, minérios e petróleo. Houve um excedente econômico enorme, que permitiu uma redistribuição desse excedente e permitiu ampliar programas sociais, mas que não gerou nenhuma autonomia.

Então, o discurso das conquistas sociais tem que ser relativizado, embora efetivamente tenha havido uma melhora no salário mínimo, etc. Mas o grosso do esforço dos governos de Lula e Rousseff foi de ampliar a participação do empresariado na riqueza brasileira. Instrumentalizaram todos os setores do governo, especialmente as estatais, como a Petrobrás, a Eletrobrás, BNDES e demais órgãos, para fazer essa aliança do governo de coalizão.

Criaram verdadeiros despachantes desses interesses nos órgãos públicos, representando esses interesses. Progressivamente, houve um desgaste do papel de hegemonia do próprio Partido dos Trabalhadores no governo, que foi fazendo tantas concessões negociadas internamente que, quando a economia, depois da crise de 2008, finalmente se deteriorou, se agravou, o papel do próprio partido no governo se revelou desnecessário para aqueles com os quais o PT tinha formado sua aliança, o PMDB e os demais partidos que integravam o governo de coalizão liderado pelo PT.

Quando eles se tornaram inservíveis e inúteis, quando a popularidade despencou, não tinham mais nada para entregar, principalmente porque aquilo que o PT entregou antes foi servir como algodão entre os cristais. Um governo pelego no sentido clássico da palavra, de amenizar os conflitos, passar “credibilidade”, manietar e instrumentalizar os movimentos sociais, o aparelho sindical e todas as forças.

Nesse sentido, o momento atual representa a deterioração total daquilo que foi proclamado como sendo a Nova República, embora deteriorada ao longo do tempo, também a Constituição de 88, na sua esfera política. Os direitos sociais já vêm sendo progressivamente objeto de reformas contínuas, especialmente a partir de Fernando Henrique Cardoso. As emendas constitucionais foram sendo feitas exatamente para destruir aquilo que a Constituição de 88 representava como um avanço.

Nesse sentido, há um quadro de absoluta ilegitimidade. Um governo usurpador, que se nega a devolver o poder ao povo, que é o legítimo dono do poder numa democracia. O governo está se aproveitando, como os ratos que se aproveitam, quando o navio está afundando, para arrancar todos os nacos que ainda sobram de queijo nos porões das estatais, do BNDES, com o programa de privatizações, a entrega acelerada do patrimônio, da Petrobrás, que está sendo esquartejada. E os movimentos sociais estão sem reação praticamente, mercê do desgaste que sofreram ao serem solidários com o governo cuja verdadeira natureza vem sendo revelada agora. O jogo duplo, o discurso em favor das massas, a favor da população e do povo – e a prática a favor das elites.

O quadro, hoje, não poderia estar pior. E o Congresso Nacional, o Executivo e o próprio Judiciário vão mantendo tudo. Talvez a expressão que melhor defina a falta total de ética, é o que disse um membro do Conselhão lá do Temer, que afirmou: “presidente, aproveita a sua impopularidade e faça as reformas necessárias”. Necessárias para quem? Essa é a definição do governo. Um governo de usurpadores, que nega a democracia, a partir de seu princípio fundamental. Para fazer as “reformas” em benefício de quem? Da elite, do capital financeiro nacional e internacional.

A greve, nesse sentido, representa um passo extremamente importante para dizer: sim, o povo brasileiro pode retomar em suas mãos o poder e exigir uma mudança radical. Retomar eleições gerais, uma Constituinte, pelo menos na esfera política, para mudar a forma como se elege, mudar a forma como se comportam os eleitos no Congresso e no Executivo. Está muito claro que este governo talvez não consiga nem concluir suas “reformas” se, de fato, essa coalizão, que conseguiu parar o país no dia 28, se mantenha e se, por exemplo, partir para uma greve geral de duração mais longa. Eu acho que o próprio empresariado vai fazer com esse governo o que esses governantes fizeram com o governo anterior. Se não tiver mais o que entregar, fatalmente os próprios capitalistas, os empresários, as forças hegemônicas, vão querer se livrar dele. Numa greve geral mais longa, a economia vai entrar em colapso e isso não interessa, o que interessa para eles é se apropriar do excedente econômico.

HP: Na sua avaliação, Michel Temer está em condições de seguir conduzindo o país nesse quadro?

IS: Não. Ele não tem estatura pessoal nem política. A impopularidade absoluta dele revela claramente o caráter de seu governo. É um governo que não tem legitimidade nenhuma. Ainda que tenham vencido as eleições.

Ficou claro, em 2014, que o programa eleitoral dizia uma coisa e a prática, logo depois, transformou tudo num estelionato eleitoral já da própria presidente de então. Muito mais o seu vice, que, enfim, acabou usurpando o poder, mas como subproduto da ação do povo, porque, quando se fala em golpe, é preciso falar dos vários golpes. O primeiro, quando o PT proclamava esses mesmos valores e princípios. Já na eleição de 2002, com a Carta aos Brasileiros, mostrou que faria o contrário do que vinha defendendo.

O segundo golpe foi a própria eleição de 2014, quando se formulou um programa e um discurso – e a prática depois foi outra. E, finalmente, o terceiro golpe vem agora, com essa claque, que historicamente está sempre no governo, liderada agora pelo senhor Temer, que não tem a mínima condição ética, nem moral e muito menos política de se manter no governo.

Os aliados do PMDB, do Temer, são exatamente os mesmos da coalizão construída a partir de 2003. O partido do Kassab, o PR, etc. São os mesmos, à exceção do PT, que hoje não está aliado ao PMDB, e do PSDB, que, no momento anterior, não estava. À exceção desses dois, é a mesma coligação. Apenas substituíram a liderança do PT, porque ela se tornou desnecessária. O projeto é o mesmo.

HP: O Brasil está em recessão há três anos. A política neoliberal desintegrou Collor e FHC, derrubou Dilma e está incinerando o Temer. O que significa insistir nessa política de juros altos, câmbio favorável às importações e arrochos, salarial e fiscal?

IS: Esse é um processo de depauperação do povo, que não permite o crescimento econômico necessário. Não está aumentando a produtividade, que teve um espasmo, quase um oásis no deserto, no período de 2003 até 2008, por causa do “boom das commodities”. No restante, esse modelo está esgotado. No mundo inteiro. Todas as eleições recentes, Brexit, a eleição de Trump, e mesmo na França – pelo menos substancialmente – revelam que a população está insatisfeita com esse sistema econômico. Então, é preciso mudar as bases. Organizar a economia com base na produção. Incrementar a produtividade. Isso exige outras ações.

HP: Nós temos recursos suficientes para financiar um projeto nacional de desenvolvimento, sem necessitar pendurar o país no capital estrangeiro?

IS: Nós temos. Basta olhar o valor imenso do petróleo, o potencial hidráulico, o potencial eólico. A apropriação social da energia tem permitido o incremento da produtividade social do trabalho – produzir mais e distribuir melhor. Nós temos condições de gerar um excedente econômico enorme, aqui dentro, com a renda petroleira. O Brasil tem assegurados, hoje, mais de 100 bilhões de barris de petróleo, talvez cheguemos até ao dobro ou triplo disso. Só falta completar a exploração do pré-sal.

Esse excedente econômico pode ser reciclado, para alavancar os investimentos necessários na infraestrutura, e daí, em cooperação com os demais países, formular a base de capital de investimentos, para ter um projeto autônomo de industrialização, de urbanização, enfim, de todas as necessárias infraestruturas humanas, educação de qualidade, ciência e tecnologia, proteção ambiental. Isso tudo pode ser feito de maneira ordenada, se nós sairmos desse círculo vicioso, em que o neoliberalismo nos jogou.

Quando eu menciono a cooperação com a China, com a Índia, com a Rússia, África do Sul e outros países, é porque ela pode ocorrer. A China, como o Japão e a Índia, necessitam de petróleo, de outros recursos naturais, alimentos – e nós temos condições de produzi-los. O que nós temos que fazer é aumentar o avanço da cadeia produtiva dessas áreas e promover os investimentos em infraestrutura. Isso pode ser feito, por exemplo, com os trens de alta velocidade da China, com o Metrô. Nós podemos fazer uma empresa que congregue todos os metrôs do Brasil e, em cada cidade com mais de um milhão de habitantes, construir um transporte eficiente e rápido, de massa, para acabar com esse sofrimento do povo. São investimentos futuros, trens, portos, vias navegáveis, promover uma saída para o Pacífico, mediante ferrovias, para integrar com mais eficiência a economia, para esse intercambio, porém num patamar de cooperação.

HP: Que papel têm as alianças com outros países em um caminho próprio e independente para se desenvolver?

IS: O crescimento econômico pressupõe a necessidade de ampliar a produtividade, melhorar o padrão tecnológico do país e investir fortemente em infraestrutura. Isso pode ser feito, por exemplo, com uma aliança estratégica com a China, que vem buscando agressivamente oportunidades. É claro que temos de aprender com os próprios chineses. Quando se diz que o Estado esgotou seu papel na economia, olhemos para a China. A economia que mais tem crescido no mundo, nas últimas décadas, o fez mediante um papel protagônico, hegemônico do Estado, das empresas estatais e públicas. Há mais de 100 mil empresas estatais na China.

É interessante recuperar o padrão deles. Começaram tendo apenas força de trabalho, depois fizeram aliança com empresas internacionais, que foram para lá fabricar automóveis, a própria Volkswagem do Brasil foi fabricar lá.

A cooperação era em termos muito duramente negociados. Hoje, a China tem reservas internacionais de 3 trilhões de dólares, emprestadas em grande parte a juros negativos em títulos do Tesouro americano. Esses capitais estão ávidos por buscar novas alianças estratégicas. Nós temos uma carência enorme, na educação pública, na saúde pública, na infraestrutura, reforma urbana, reforma agrária, ciência e tecnologia e proteção ambiental.

Tudo isso pode ser feito a partir de recursos naturais, especialmente o petróleo, a área agricultável, os minérios, que foram entregues para a Vale do Rio Doce e para outras empresas. O potencial hidráulico, o potencial eólico, são recursos que, se apropriados adequadamente, são a base dos investimentos que vão gerar o crescimento e a geração de empregos.

O Brasil pode seguir o seu caminho, mas sem abrir mão de alianças estratégicas com países como a China, a Índia, a Rússia, os países da América do Sul, da América Latina, da África.

Dessa forma, saímos por cima. A saída que os neoliberais vêm tentando é por baixo. É minimizar a produção para equilibrar as finanças. Os problemas da Previdência do Brasil, por exemplo, e demais setores, se resolve com aumento da produção. A saída é outra.

Cito novamente o exemplo da China. É claro que o regime político de lá é diferente daqui, mas há que aprender, não ser cego, como estão sendo, caminhando no sentido contrário, dizendo que o Estado tem que sair da economia. Ele tem que estar nos setores estratégicos. Tem que liderar os investimentos.

Nesta parte final da entrevista exclusiva de Ildo Sauer à Hora do Povo, o professor da USP e ex-diretor da Petrobrás, destaca a importância do uso do enorme excedente econômico criado no setor de energia no Brasil para viabilizar o desenvolvimento auto-sustentado do país. Ele diz que a luta política está centrada exatamente em quem deve controlar essas riquezas brasileiras e em benefício de quem elas devem ser utilizadas

S.C.

HP – O petróleo do pré-sal tem um custo de produção de 10 dólares o barril, e numa situação de baixa do preço, ele é vendido por 50 dólares. É isso mesmo?

IS – Sim. Efetivamente no Brasil o petróleo tem um custo direto de capital de trabalho inferior a 10 dólares hoje e tende a decrescer mais ainda. O país tem no mínimo 100 bilhões de barris assegurados de petróleo. Isso significa que se nós fossemos fazer um plano de produção, digamos em 40 anos, onde nós vendêssemos 2.5 bilhões de barris/ano, a 50 dólares, são US$ 100 bilhões por ano. Como ele está sendo apropriado? Tem dois problemas gravíssimos. A Shell comprou a BG só porque ela era sócia de Tupi. A BG tem 25% do campo de Tupi. A Shell está comprando tudo quanto é campo de petróleo, e está exportando tudo aceleradamente. Aí vem um problema, se o Brasil efetivamente quer atuar nesse sentido, ele erra na política de preço. Tanto o Brasil quanto o Canadá e o México têm sido procurados pela OPEP, que junto com a Rússia são capazes de produzirem metade do petróleo que é consumido no mundo hoje. Controlam mais de 90% das reservas de petróleo do mundo. A OPEP tem condições de impor o preço do petróleo. Ele pode ficar próximo daquilo que seria alternativa aos combustíveis líquidos, que seria liquefazer carvão, que tem um custo da ordem de 80 a 100 dólares, por isso o petróleo pode estar a 100 dólares.

Foi uma longa jornada desde a criação da OPEP em 1960, antes do fracassado choque dos anos 70. Por iniciativa do presidente Chaves, que contornou problemas internos – principalmente Irã e Arábia Saudita –  e unificou sua atuação, eles conseguiram montar uma coalizão para fazer o preço subir.  O Brasil deveria naturalmente estar ao lado da OPEP.

Os EUA criaram um programa em 2011, e anunciaram até que a presidente do Brasil de então tinha feito um acordo com o Obama em março de 2011, quando eles se encontraram. O acordo foi no sentido de se dar apoio à iniciativa norte americana de promover os biocombustíveis, promover o xisto, promover a mobilidade elétrica, garantir a ampliação da fronteira do golfo mexicano e a produção do pré-sal. Tudo para baixar o preço do petróleo. Isso é um tiro no pé.

Os dois modelos adotados no Brasil, de partilha e concessão, produzem o mesmo resultado. Elevará a produção do petróleo em detrimento do preço. O Brasil precisará atuar coordenadamente com esses países da OPEP para promover esse excedente econômico enorme que nós temos aqui, que pode chegar a US$ 100 bilhões ou R$ 300 bilhões por ano. Isso pode ser usado como base para investimento autônomo e como trunfo em negociações com outros países. Só que o modelo que está em vigor tem que ser alterado.

Estão desmantelando a Petrobrás. A Shell está exportando e prevê-se que em breve ela estará exportando mais e produzindo mais que a Petrobrás no Brasil. Esse é um dos graves problemas causados nessa longa deterioração política que vem sendo comandada pelo PT e depois pelos parceiros usurpadores deles, o governo atual. Eles estão despedaçando a Petrobrás. Esta ação é uma ameaça à possibilidade de nós gerarmos o excedente econômico interno capaz de estar na base do nosso desenvolvimento. Claro que o setor agrícola também tem possibilidade de gerar um enorme excedente econômico e tem que mudar a forma como ele é partilhado. O setor mineral e o setor hidráulico também podem gerar excedente.

HP – O senhor quantificou a renda com o excedente correspondente ao petróleo, que seria na média US$ 100 bilhões, com o preço mantido em US$ 50 o barril. O excedente do setor hidroelétrico poderia ser calculado também?

IS – Sim. Lamentavelmente o governo, de 2012 para cá, obrigou as empresas do Sistema Eletrobrás e as estaduais a venderem energia a um preço próximo do custo de operação e manutenção. Um valor mínimo para a energia seria em torno de R$ 100 o Megawatt/hora (MWh). Ela foi vendida a 8, 9 e 10 reais o MWh por contratos de longo prazo. Isso mostra que o excedente é na ordem de 90 ou 100 reais. E a produção brasileira dessas hidrelétricas está na ordem de 400 milhões de MWh. Chegamos a 40 bilhões de reais por ano de excedente hidráulico. Esse é um número não desprezível. Isso se vender a 100. Hoje, o custo da nova energia está muito acima disso. Está na ordem de R$ 170. E não há nenhum problema em fazer aquilo que foi proposto em 2002. Que seria vender a energia entre o custo médio e o custo marginal, que é o custo produzidos pelas novas empresas. Então, parte do excedente seria apropriado pelo sistema produtivo, dando-lhe uma vantagem comparativa, e a outra metade iria para o resgate da dívida social. Isso é permitido porque, pela Constituição, os potenciais hidráulicos e os minerais do subsolo, pertencem à população brasileira. E muitos ainda não têm automóvel e nem energia elétrica. 2,5 milhões de brasileiros estão às escuras apesar do tão proclamado programa “Luz para Todos”. Ainda há quase um Uruguai às escuras no Brasil.

Podemos fazer algo semelhante com o excedente do minério de ferro e outros minerais que estão sendo exportados como matéria prima bruta, ao invés de se ter um avanço maior da cadeia produtiva aqui dentro. De maneira que os recursos estão aí. O problema é exatamente nesses setores, petróleo, gás natural, agrícola, BNDES e o setor elétrico. Setores onde o governo tinha maior poder de arbítrio de escolher os vencedores. Exatamente neles é que ocorreu o processo de barganha no governo de coalizão. O que o capitalista mais detesta é a concorrência. Eles querem ser monopólio e se apoderar do excedente sem muito esforço. É muito difícil disputar a mais valia quando a classe trabalhadora está tão oprimida e explorada como a do Brasil. É muito mais fácil fazer um arranjo político para se apropriar do excedente econômico de várias formas, ou na produção do petróleo, ou no superfaturamento de infraestrutura como as empreiteiras fizeram. Para isso montou-se essa aliança toda. Então, nos últimos anos, especialmente de Collor para cá, esses segmentos políticos tornaram-se objeto de subordinação aos vários interesses em detrimento dos interesses da população, do povo.

HP – Nós temos acesso e condições tecnológicas para levarmos a produção industrial adiante e obtermos esses excedentes econômicos com nossos próprios recursos?

IS – Claro. Nós temos uma boa base de universidades, uma boa base industrial, agora, temos que melhorar muito a infraestrutura. Todos os meios viários, aquavias, ferrovias especialmente, rodovias, mobilidade urbana, metrôs e outros métodos de transporte coletivo de qualidade. Nós temos recursos naturais, nós temos energia. As mais importantes fontes para produzir: a eletricidade, o hidráulico e mais o eólico, todas com um custo muito baixo. Abrir mão de vento e água, que são recursos em parte gratuitos, é um erro. E temos, de outro lado, o petróleo. E a enorme traição vem da ideia que tem que acelerar a produção do petróleo do pré-sal. Convertê-lo em moeda, só para fazer a partilha de uma parte do excedente, ainda que menor agora, para todos os atores que atuam na cadeia, de construção de plataformas a quem financia, quem opera.

Para quem tem uma Petrobrás, com capacidade de produzir, é mais seguro ter o petróleo quantificado, com tecnologia pronta, e convertê-lo na medida em que o excedente econômico vá sendo utilizado no processo de desenvolvimento. Não é certo convertê-lo em moeda, sujeita ao toma lá da cá da claque política de Brasília. Na partilha diziam que o petróleo pertenceria ao governo. Só que não tem onde estocar. Produzido, tem que virar moeda. O melhor estoque dele é onde ele está. Os reservatórios delimitados e conhecidos.

O enfrentamento político está exatamente em relação à possibilidade de gerar o excedente necessário para financiar diretamente o desenvolvimento. E são exatamente os setores que são disputados nos processos dos governos de coalizão.

Eles se dedicaram a dilapidar esse excedente, a se apropriar dele. E o desmonte que está sendo feito hoje criminosamente contra a Petrobrás está na base disso. O setor elétrico já foi praticamente destruído no governo anterior. Agora é preciso recuperar as bases. A Petrobrás continua de pé, as hidrelétricas estão aqui e é preciso rever isso tudo para que se possa montar tudo em novas bases. Há duas formas de gerar excedente. Uma é pela exploração do trabalho. Só que está difícil, pelo grau de exploração a que está submetida a classe trabalhadora brasileira. O outro é através desses segmentos estratégicos que eu destaquei, onde há um lucro suplementar. A chamada renda. A renda mineral, a renda hidráulica, a renda eólica e especialmente a renda do petróleo, com um lucro extraordinário. Só que esses são o foco do ataque político e econômico contra a classe trabalhadora e contra as riquezas potenciais do país. E esse governo está chegando ao estágio último da subordinação e do ataque. As frentes de ataque estão claramente definidas e solapam as possibilidades de construirmos um projeto autônomo.

HP – O senhor acha que nós teríamos que reestatizar aquilo que foi privatizado nesses setores, seja no período FHC, seja no período Lula/Dilma, e no governo Temer, para podermos, o Estado, se apropriar desse excedente estratégico?

IS – O governo Rousseff disse que não privatizou as hidrelétricas. De fato, elas foram mantidas sob o comando de Furnas, da Chesf, da Eletronorte e Eletrosul. No entanto ela privatizou o excedente econômico. Te dou um exemplo de um processo inverso. A Bolívia manteve a produção do petróleo pelas empresas estrangeiras. E socializou o excedente. De maneira que o discurso de que tem que ser estatal não é suficiente. Na Bolívia ficou muito claro. A Petrobrás, a British Gas (BG) e a Total continuam operando os campos da Bolívia, só que 80% do que é produzido vai para o Estado.

A ideia de só estatizar não é suficiente. É preciso promover o controle social sobre a geração de excedente nesses segmentos. É claro que tem que recuperar o papel protagonista da Petrobrás, e a chance foi perdida agora. As ações da Petrobrás voltaram a valer muito pouco. FHC vendeu 20% ou 40% da Petrobrás por uma ninharia, na ordem de US$ 5 bilhões apenas. Quando eu fui destituído da Petrobrás, ela valia, na bolsa – não que isso signifique um paradigma importante – mais de US$ 236 bilhões. Então aqueles 30% estavam na ordem de US$ 80 bilhões. Um prejuízo enorme.

O que é fundamental é a apropriação do excedente econômico. A reestatização, aonde, para fazer isso, for necessário ou possível, deve ser feita. Mas o CNPJ em propriedade do Estado não é suficiente. O excedente desses setores todos tem que ser socializado. Não vale a pena fazer apenas o discurso da estatização. Tem que ter força política para se apoderar do excedente e destiná-lo à educação pública, reforma urbana, reforma agrária, a proteção ambiental e à Ciência e Tecnologia.

Há vários modelos possíveis. Evidente que o ideal seria reestatizar completamente a Petrobrás e passar a ela o monopólio. Não precisa esse aparato inteiro, tipo Agência Nacional do Petróleo e todos esses mecanismos que estão aí em volta para garantir a perda do excedente. A ideia de criar uma grande petroleira privada nos governo Lula e Rousseff, por exemplo, foi um escândalo. Ela [Dilma] vestiu até um macacão da OGX. Fracassou. Isso foi um ataque frontal à ideia de que o excedente econômico do petróleo devesse ser socializado. Está claro o caráter do que foi feito e do estágio em que nos encontramos agora. O governo quer promover o saque final e a entrega de tudo. Isso que está em jogo. Essa é a luta política.

O setor agrícola também é gerador de um excedente econômico. É clássico isso. A renda da terra vem desde David Ricardo, Marx e etc. A Lei Kandir liberou os impostos para qualquer exportação. Vamos ter que repensar todo esses setores que criam exedentes. E é possível fazê-lo sem criarmos grandes conflitos. Se precisar estatizar para apropriar o excedente, vamos fazê-lo, levando-se em conta a correlação de forças. Eu dou o exemplo da Bolívia porque eles não conseguiram colocar de pé a YPFB novamente para ser uma empresa com capacidade de atuação. Mas ela passou a ter um poder regulador e possibilitou apropriar o excedente em nome do Estado. Mas o que permitiu isso é que, acima dela, está o comando político com uma visão diferente da nossa sobre o papel dos recursos naturais na renda.

HP – Além da traição programática, por que o senhor acha que o PT e os demais partidos da base, se envolveram neste processo todo de corrupção?

IS – É muito simples. Corrupção não é prática da esquerda. Corrupção é um método permanente que a direita tem usado para instrumentalizar os governos e o espaço público. No momento em que o governo aderiu ao neoliberalismo, o partido hegemônico passou a ter uma prática de direita, ou seja, adotando a corrupção. De maneira que não adianta manter o discurso na defesa do popular e a prática, ao contrário. Isso revela o caráter dicotômico do governo. Isso significou a destruição de um movimento social pelo qual muitos dedicaram sua própria vida.

São três décadas dedicadas a construção de um movimento que chegou ao governo para depois destruí-lo por dentro em nome dessas práticas que são tipicamente de um governo de direita. Na nossa diretoria de Gás, nós desroubamos um bilhão em três contratos, enfrentando a oposição do governo, do presidente da República, do chefe da Casa Civil, da ministra das Minas e Energia e do Ministro da Justiça. Para desroubar um bilhão de dólares de três contratos, um, inclusive, com Eike Batista.

A corrupção começou muito antes, mas, a partir de 2005, houve uma nítida intensificação do olho gordo sobre a Petrobrás. A pata grande do governo se fez sentir com toda a violência, do Congresso e do Executivo, contra a Petrobrás. E aqueles que fizeram esforço de resistir foram expulsos de lá porque não se subjugaram a serem despachantes de interesses ou os “crachás alugados”, como aconteceu com grande parte desses que estão hoje na prisão. O problema da Petrobrás se intensificou a partir de Brasília. É inegável a responsabilidade dos mais altos níveis dos governos em relação ao que aconteceu. Isso está sendo revelado agora, mas quem vivia lá dentro já sentia. Aquilo que parecia ser equívoco, hoje está claro que era deliberado e criminoso. Tudo gira em torno de se apoderar do excedente econômico. Os juros, os monopólios, o BNDES, ou esses segmentos como o petróleo, minérios, e o setor agrícola. A lei Kandir, por exemplo, tem que ser extinta. Quando há excedentes muito grandes, o governo tem que intervir. Até o Delfim fez isso com o confisco da soja, do cacau. Quando há uma renda enorme, não há razão nenhuma para que não se aproveite isso para formar uma base onde se use esse excedente para os investimentos. Tem que socializar parte disso. Eu não vejo como não fazê-lo.

HP – Qual a sua avaliação da Lava Jato e da atuação do juiz Sérgio Moro?

 IS – Duas observações. A primeira, a perplexidade e a tristeza de saber que os fatos existem e precisam ser investigados e é preciso resgatar o respeito e a dignidade daquilo que é a República. De outro lado não se pode deixar de entender que também há um processo pelo qual parece que a única coisa que importa no Brasil agora é o conflito judiciário. Isto é, organizar a produção, aumentar a produtividade, construir as bases materiais para atender as necessidades da população, parece que ficou em segundo plano, por causa da hegemonia da questão judicial. Isso não é suficiente. A investigação tem que ser feita, os criminosos devem ser punidos, inclusive para trás, não só de 2003 para cá. É preciso passar a limpo tudo. Agora, não basta achar que fazendo isto, a investigação da polícia, do MPF e da justiça, o país terá mudado. Não terá mudado. Nosso desafio é a fome, a pobreza, a ausência de saúde pública, de educação pública. A ausência de um projeto de país.

HP – O Lula disse que não sabia de nada. Isso é crível?

IS – Eu posso responder isso com uma expressão tipicamente lulista. Se não sabia, era incompetente para estar lá. Sim porque, como é que pode ter dois presidentes da República que nada sabiam, mas nomeavam, faziam acertos, acordos e não viam nada. Eram cegos? Não eram. Se é crível que eles não sabiam é porque não deviam ter estado lá nunca. Seria pura incompetência e irresponsabilidade também. Tudo foi feito a partir de Brasília. A instrumentalização partiu de lá. Foram negociados esses espaços para promover o saque da riqueza e do patrimônio público. Se o presidente da República proclama que não sabia, então deviam ser destituídos por incompetência total ou por irresponsabilidade.

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