*MARCUS VINICIUS DE ANDRADE
Entre os anos 1930 e 2000, o Brasil viveu o apogeu do processo de afirmação nacional de sua cultura. Tendo atravessado situações políticas diversas, passando por democracia e ditadura, liberdade e repressão, estímulo e castração, a cultura brasileira produzida nesses 70 anos, apesar de tudo, conseguiu sair-se vitoriosa no balanço feito pela história, sendo hoje dada como importante referência por estudiosos do Brasil e do exterior. Foi exatamente a produção cultural desse período que fez o Brasil destacar-se em todo o mundo, notadamente em áreas como a arquitetura, a música, a literatura e o cinema, entre outras.
Entretanto, nos últimos tempos, parece estar havendo um verdadeiro desmanche do que de mais positivo se construiu no país em termos de políticas culturais públicas, o que inevitavelmente afeta e contamina o pensar/fazer cultura no âmbito privado. Para não dizer que estamos à deriva culturalmente, diríamos que, grosso modo, o país está carente de um projeto cultural adequado aos novos tempos. Ainda falamos e discutimos cultura com ideias e modelos de vinte anos atrás.
Ao mesmo tempo em que precisamos rever, e se possível revigorar, as boas experiências que, no passado, fizeram a excelência cultural brasileira, temos que avançar em direção à contemporaneidade, prospectando e planejando o futuro cultural do país em torno de um projeto de nação, de que tanto necessitamos.
BREVE HISTÓRICO PARA REFLEXÃO
Até a década de 1870, quando começaram a ser visíveis os esboços de uma indústria cultural no Brasil, em razão da profissionalização crescente das áreas do teatro e da música, da eclosão das modernas diversões urbanas, da consolidação empresarial do jornalismo impresso e da proliferação das editoras literárias e musicais, etc., as atividades culturais no país dependiam basicamente do empenho de criadores e produtores abnegados, do apoio de eventuais mecenas e, mais raramente, das benesses concedidas pelo Império aos criadores e empreendedores isolados de reconhecida excelência. Na virada para o séc. XX e ao longo das primeiras décadas deste, o advento das novidades tecnológicas disponíveis ao grande público, como o disco fonográfico, o rádio e o cinema, fez com que novas exigências passassem a demarcar o mercado de bens culturais, agora mais coletivizado e menos infenso à lógica artesanal e aos interesses exclusivamente privatistas. Datam dessa época os primeiros esboços do que seriam políticas públicas para a cultura, cabendo citar-se aí a primeira lei brasileira sobre direitos autorais, a lei nº 496 de 1898, de autoria de Medeiros e Albuquerque, da qual já constavam avançados dispositivos, ainda presentes na legislação atual.
A partir do Novecentos, o envolvimento do Estado brasileiro nas questões culturais começou a se fazer sentir com maior ênfase. Em rápida mirada, caberia constatar que o que ainda temos hoje de mais consistente em termos de Política Cultural pública no país seria produto de dois momentos políticos distintos no séc. XX: do primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945) e – forçoso reconhecer -, do ciclo dos governos militares (1964-1985).
Antes mesmo antes de chegar à chefia suprema da nação, o ainda deputado federal Getúlio Vargas havia feito aprovar o decreto 5.492 (16 de julho de 1928), no qual estabelecia a obrigatoriedade de pagamento de direitos autorais pelas emissoras de rádio e empresas que veiculassem ou incluíssem músicas em sua programação; o mesmo decreto também regulava as empresas de diversões, a contratação dos serviços teatrais e, principalmente, regulamentava a profissão dos artistas de variedades (incluindo palhaços, músicos, malabaristas, coristas, etc.). Isso teve importante significado social, numa época em que as atrizes eram obrigadas a ter cadastro junto à Delegacia de Costumes, tal como as prostitutas, e como estas, sujeitarem-se a exames médicos periódicos. Com Getúlio, os artistas de variedade passaram, quando menos institucionalmente, a integrar a classe trabalhadora brasileira.
Foi mais adiante o Dr. Getúlio Vargas: já Presidente da República, em 1932 promulgou a primeira lei em apoio ao cinema brasileiro, precursora da atual cota de tela, embora então restrita aos filmes documentários; criou, em 1936, o Serviço do Patrimônio Histórico Nacional (atual IPHAN), onde teve colaboradores do porte do Ministro Gustavo Capanema, do diretor Rodrigo Mello Franco de Andrade, dos poetas Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade, entre outros; ainda em 1936, instituiu o Serviço de Radiodifusão Educativa, com a colaboração do antropólogo Edgard Roquette-Pinto, ao lado de quem também criou, em 1937, o Instituto Nacional de Cinema Educativo; no mesmo ano de 1937, Vargas criou o Instituto Nacional do Livro, o Serviço Nacional de Teatro e o Museu Nacional de Belas Artes; em 1940, criou o Museu Imperial e absorveu o patrimônio de um contumaz devedor do Estado para constituir a célebre Rádio Nacional, certamente o principal marco de nossa radiodifusão pública; de 1937 a 1944, Vargas ainda deu inestimável suporte para que o maestro e compositor Villa-Lobos desse curso a seu projeto educacional em torno de uma música culta nacional de raiz popular.
Vê-se, portanto, que Vargas concedeu prioridade a todos os itens hoje tidos como essenciais à uma moderna agenda cultural pública, a saber: a defesa do patrimônio artístico e histórico, a proteção da propriedade intelectual, a legitimação profissional dos artistas, a radiodifusão e o cinema educativos, a regularização das atividades teatrais e da difusão de livros e filmes, a criação de museus, etc. Não por outra razão, segundo Angélica Ricci Camargo, especialista do Arquivo Nacional e Mestra em História Social, “o primeiro governo de Getúlio Vargas tem sido considerado como um marco para a implantação de políticas culturais no Brasil.”
Ainda que pareça paradoxal, vê-se que mesmo durante o regime de exceção instaurado em 1964, as prioridades culturais estabelecidas pelo governo Vargas continuaram a fazer parte da agenda dos governos militares, inclusive sendo ampliadas em muitos casos. Foi o que se deu com a criação do Conselho Federal de Cultura (1966); com a criação da Embrafilme (1969), órgão de fomento à produção e à distribuição cinematográfica nacionais; com a criação do Conselho Nacional de Direito Autoral (1975) e a promulgação das leis regulamentadoras dos Direitos Autorais e Conexos; com a criação em 1975, da FUNARTE (que incorporou o antigo Serviço Nacional de Teatro, transformado em Instituto Nacional de Artes Cênicas, INACEN, sendo criado também um Instituto Nacional de Música e outros mecanismos culturais) além de outras iniciativas reconhecida e prioritariamente voltadas para uma Política Cultural pública.
Inevitável constatar que foi entre os anos 1930-2000 que o Brasil criou, divulgou, consumiu e exportou o melhor de sua produção cultural até hoje, tanto em termos de expressões individuais como de iniciativas coletivas: foi essa a época gloriosa de Villa Lobos, de Pixinguinha, de Sinhô, de Caymmi, de Ary Barroso, de Portinari, de Mário de Andrade, de Manoel Bandeira, de João Cabral e tantos outros extraordinários poetas; do grande ciclo do romance brasileiro, com Jorge Amado, Érico Veríssimo, Clarice Lispector, José Lins do Rego e outros; do surgimento das primeiras grandes editoras nacionais e das primeiras universidades públicas do país; da afirmação da consciência do patrimônio cultural público e nacional; da eclosão do Teatro Experimental do Negro, do Teatro de Brinquedo, do Teatro Brasileiro de Comédia, da Companhia Dramática Nacional, da Cinédia e da Atlântida; de Procópio Ferreira, de Oscarito e Grande Otelo; da companhia Tonia-Celi-Autran, do Teatro de Arena de São Paulo com Boal, Guarnieri e Zé Renato; do Teatro Oficina com José Celso Martinez Correa; do CPC da UNE com Vianinha e Leon Hirzschman à frente; do Teatro Popular do Nordeste (criado por Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho); da poesia concreta; de Rubem Gerchmann e Ligia Clark; do Teatro Opinião; do Cinema Novo de Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Luiz Sergio Person, Denoy de Oliveira e outros; da bossa nova e da canção engajada, com Tom Jobim, Carlos Lyra, Roberto Menescal, João Gilberto e Nara Leão; do advento da MPB e do Tropicalismo, com Chico, Caetano, Sydney Miller, Geraldo Vandré, Elis Regina e tantos mais. Todos esses criadores, poetas, escritores, músicos, atores, dramaturgos, encenadores e artistas plásticos, integraram ao longo daqueles 70 anos, talvez o momento mais representativo da cultura popular brasileira até os dias de hoje. Julgamos que isso só foi possível porque, mesmo perfilados em correntes estéticas e linhas políticas distintas e até mesmo conflitantes entre si, esses criadores souberam entender o espírito do seu tempo e participar, coletivamente, do grande debate pela afirmação de uma cultura em bases nacionais, o que então mobilizava o sentimento e o pensamento do país.
Mas tudo isso – ou o que restou disso – está sendo desmontado de forma desorganizada, prejudicial e acriteriosa. Assim, o fazer cultural brasileiro, com as honrosas exceções de sempre, vem se afastando das questões urgentes e fundamentais à sociedade, preferindo adotar, como se cultura fosse, o verniz midiático e ligeiro dos discursos das corporações dominantes no mainstream. A isso vem-se reduzindo o debate cultural brasileiro em tempos recentes.
Precisamos agora de cenas explícitas de cultura. Não mais a falação balofa de ativistas de redes sociais, papagaiando frases-feitas supostamente engajadas e progressistas, mas que terminam por levar mais água ao moinho da mesmice dominante. Precisamos não mais de meros enunciados de intenções rasas e genéricas, mas, sim, de efetivos tópicos de ação que nos permitam fazer o desmanche do desmanche praticado em tempos recentes e reabrir o debate cultural do país com base nas reais exigências para nossa afirmação enquanto nação. Afinal, que Cultura queremos para os tempos atuais?
São Paulo, Abril de 2018.
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