Nacional-desenvolvimentismo

Informe especial sobre a desnacionalização

HAROLDO LIMA

 

A Nação brasileira forjou-se em período relativamente recente, na luta contra a dominação colonial portuguesa. Seus ideais de autonomia e liberdade firmaram-se em três movimentos marcantes de nossa história: a independência nacional, a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República. Anseios nacionais e democráticos, até radicalizados, estiveram presentes em todos esses movimentos, mas não predominaram. Em decorrência disso, a subordinação do país aos interesses externos nunca deixou de existir, mudou de formas, não de essência.

Foi a Revolução de 1930, a despeito de limitações e de posições antidemocráticas que assumiu, que lançou as bases de um Projeto Nacional no Brasil.

No período de 1930 a 1954, marcado pela figura do presidente Vargas, implantaram-se os primeiros órgãos e empresas de um Estado nacional brasileiro, o Conselho Nacional do Petróleo (CNP), em 1938; o Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica, em 1939; a Companhia Siderúrgica Nacional, em 1940; a Companhia Vale do Rio Doce, em 1942; a Companhia Nacional de Álcalis, em 1943; a Fábrica Nacional de Motores, em 1943; a Companhia Hidrelétrica do São Francisco, em 1945; o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, em 1952; a Petrobras, em 1953; a Eletrobrás, em 1954.

A formação da inteligência brasileira também deu seus primeiros significativos passos nesse período com a criação, com muito atraso, das duas universidades basilares de nossa história: a Universidade de São Paulo, em 1934, e a Universidade do Distrito Federal, em 1935, no Rio de Janeiro. Fundam-se ainda, aí, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, a CAPES, o Conselho Nacional de Pesquisas, o CNPq, o Centro Técnico da Aeronáutica, CTA, tudo em 1947, e o Instituto Tecnológico da Aeronáutica, o ITA, em 1950.

Foi com base nesse lastro orgânico, econômico e educacional que se pôs em prática no país uma política de substituição de importações, com o que se iniciou o longo período em que o desenvolvimento brasileiro foi dos maiores do mundo.

Os dez anos seguintes, até o golpe militar de 1964, a despeito de diferenciações, foram marcados pela colocação da indústria automobilística estrangeira como setor nuclear de nossa economia. A construção da base econômica nacional sofreu uma inflexão, o projeto nacional em andamento deu lugar a um desenvolvimento dependente. Apesar de tudo, a preocupação com o nacional não foi abandonada. Garantiu-se, por exemplo, o controle brasileiro no setor de autopeças e criou-se, em 1961, o grupo que organizaria o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o INPE, de São José dos Campos.

A ditadura militar, implantada em 1964, estabeleceu-se com o apoio norte-americano, no quadro da Guerra Fria, para conter suposto avanço comunista no país. Pôs, de início, no comando do planejamento econômico um serviçal dos norte-americanos, Roberto Campos, que facilitou o desembarque de diversos grupos transnacionais no Brasil (1).

Entretanto, no período do regime militar houve significativa retomada da construção da base econômica nacional e da política de substituição das importações. A Petrobras foi fortalecida e ampliou suas atividades para as estratégicas áreas, petroquímica e de fertilizantes, mesmo que, contraditoriamente, o monopólio estatal tenha sido desrespeitado com os contratos de risco. O setor energético deu um salto com diversas obras, entre as quais as gigantes Itaipu e Tucuruí. Criou-se a Telebrás, importante marco em nosso desenvolvimento. O Pró-álcool enfrentou a crise do petróleo produzindo combustível renovável alternativo à gasolina, e mostrando quanto o Brasil pode se beneficiar da enorme reserva de biomassa que tem. O Acordo Militar Brasil-EUA, que tanto prejuízo nos trouxe, foi denunciado, o que expressou vontade de independência brasileira, apesar de ter sido substituído por outro acordo, com a Alemanha, que nos induziu a equívocos tecnológicos. Em Aramar, programa autônomo da Marinha conseguiu, com tecnologia nacional, o domínio do ciclo do urânio. Passamos a fabricar aviões, minicomputadores, insumos básicos e bens de capital. Quando começou o ciclo militar, o Estado brasileiro tinha 110 empresas estatais. Quando terminou, tinha 582 (2).

O rumo geral da construção econômica do país sofreu uma drástica mudança a partir de Fernando Collor e especialmente de Fernando Henrique Cardoso na Presidência da República, quando o neoliberalismo foi alçado à condição de política de Estado.

Característico desse período foi o desmonte dos órgãos do Estado nacional e a transferência da propriedade de inúmeras e fundamentais empresas brasileiras, públicas e privadas, para grupos estrangeiros.

O desmonte do Estado nacional já começara há mais tempo, mas cresceu espantosamente. Extintos ou esvaziados foram o Conselho Nacional do Petróleo (CNP), o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), a Secretaria de Tecnologia Industrial (STI), a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), a Central de Medicamentos (CEME), a Interbrás, a Portobrás, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), o Conselho Nacional de Meteorologia, Normalização, Normatização e Qualidade Industrial (Conmetro) e os Ministérios de Indústria e Comércio, Ciência e Tecnologia, Minas e Energia, Transporte (3).

A transferência da propriedade de estatais e empresas privadas nacionais para mãos estrangeiras foi preparada meticulosamente. A própria Constituição foi mudada para que empresas nacionais não tivessem, no Brasil, qualquer regalia frente às estrangeiras. Limitações ao capital estrangeiro que existiam na área de informática, na navegação de cabotagem, na propriedade do subsolo, na prestação de serviços, no setor financeiro, na área de petróleo, na própria compra de estatais, tudo foi abolido.

Nessa linha de entreguismo deslavado, o governo brasileiro forçou a aprovação pelo Congresso Nacional de uma Lei de Patentes, com efeito retroativo, dando privilégios inadmissíveis ao capital estrangeiro por produtos fabricados ou não no Brasil, frutos de descoberta nova ou não, em áreas como química, farmacêutica, alimentar, agrícola, metalúrgica. Através da engenharia genética, a malfadada lei também abria as portas da imensa biodiversidade brasileira ao controle estrangeiro. E o país terminou se comprometendo com um sem-número de patentes, que lhe custam caro, já que, das registradas, em 1995, 98% eram de origem estrangeira (4).

Com as defesas nacionais derrubadas, as forças de ocupação do capital estrangeiro deram o toque de avançar sobre o Brasil. E nossas estatais foram sendo assaltadas, o mesmo ocorrendo com empresas privadas.

Para essa ofensiva o capital estrangeiro alterou sua estratégia. Enquanto em 1994, para a compra de empresas que já existiam, empregara apenas 0,38% dos seus investimentos, na nova situação do país que se entregava, só entre 1998 e 1999, destinou 74,1%. Também, entre 1994 e 1998, aumentou seu

 

IED, Investimento Direto Estrangeiro, para US$ 60 bilhões.

O número de firmas estrangeiras no Brasil foi crescendo em ritmo vertiginoso. Em 1992, na lista das 500 maiores empresas privadas que operavam no Brasil, havia 142 estrangeiras – número que passou a ١٧٠ em ١٩٩٧ e que, um ano depois, saltou para 209 (5).

O método praticado pelo capital estrangeiro foi o de comprar, na negociata brasileira chamada “privatização”, empresas que já existiam, sem criar nada, sem nada construir. Foram adquirindo também firmas prestadoras de serviço, que não produzem nada que possa ser exportado para auferir divisas. E, dessa forma, o capital estrangeiro foi tomando posições ou assumindo o controle nos setores de telecomunicações, energia elétrica, bancos, siderurgia, petroquímica, fertilizantes, transportes, mineração, informática, autopeças e supermercados.

E chegamos assim ao ano 2000, véspera do século XXI, com o capital estrangeiro controlando no Brasil 90% do setor eletro-eletrônico; 89% do setor automotivo; 86% do setor de higiene, limpeza e cosméticos; 77% da tecnologia da computação; 74% das telecomunicações; 74% do farmacêutico; 68% da indústria mecânica; 58% do setor de alimentos; e 54% do setor de plásticos e borracha.

Os estrangeiros entraram em diversas áreas em que não tinham presença alguma, ou a tinham muito pequena. Na siderurgia e metalurgia, entre os anos de 1994 e 1999, sua participação subiu de 0% para 34% (6). No comércio varejista, em 1994, controlavam apenas 7,1% dos negócios, e os grandes eram brasileiros. Hoje os estrangeiros controlam cerca de 60%, e os grandes brasileiros praticamente desapareceram. O Carrefour, segundo maior varejista do mundo, já é também o segundo maior no Brasil. Nesse momento articula-se para adquirir a rede Modelo Continente, de outro grupo estrangeiro, o Sonae, português, após o que ficará como o maior grupo varejista do Brasil, com 275 supermercados e 104 hipermercados. O setor de divulgação de informações, que até esta semana ainda é privativo de brasileiros, deixará de o ser semana que vem, quando se pretende fazer uma mudança constitucional para albergar também aí o capital estrangeiro, considerando-se relativa vitória brasileira se puder limitar em 30% mais essa entrada do capital forâneo.

A revista Exame mostrou que na relação das 500 maiores empresas privadas que operam no Brasil e das 50 maiores estatais as vendas das empresas estrangeiras passaram de 31% em 1990 para 45,6% no ano 2000 e, no mesmo período e no mesmo universo, as empresas privadas brasileiras viram suas vendas cair de 42,8% para 35,7% e as estatais regrediram de 26,2% para 18,7% (7).

A desnacionalização no setor elétrico levou-nos de volta à situação de antes da Revolução de 1930, quando aí dominava o capital estrangeiro. Hoje, a Escelsa (ES) é portuguesa; a Eletrosul (RS) virou belga; a Cerj (RJ), chilena; a Coelce (CE), espanhola; a Coelba (BA), espanhola; a Celpe (PE), espanhola; a Cesp-Bandeirante (SP), portuguesa; a CEE-NNE (Norte e Nordeste), norte-americana; a CEE-CO (Centro-Oeste), norte-americana; a Eletropaulo, norte-americana; a Elektro, norte-americana; e a Cesp-Paranapanema (SP), norte-americana. E tudo vendido com financiamento do Fundo de Amparo ao Trabalhador.

Espantosa foi a rapidez desnacionalizante do setor bancário. Em 1994, quando FHC tornou-se presidente, a parcela dos estrangeiros nesse setor estava em torno dos 10%. Hoje essa participação vai além dos 50%. Nos últimos cinco anos, o número de bancos estrangeiros saltou de 2% para 17% do total das agências existentes. Enquanto em 1994 a especulação com títulos públicos correspondia a 4% das receitas dos bancos, no final de 1998 a renda

proveniente da especulação chegava a 43%.

Levantamento feito pela Federaminas (Federação das Associações Comerciais, Industriais, Agropecuárias e de Serviços de Minas Gerais) revelou que nos últimos cinco anos 835 empresas brasileiras passaram às mãos de estrangeiros. E um estudo de Fábio Comparato mostrou que o avanço do sistema financeiro foi tal que a indústria no Brasil, “pela primeira vez desde 1930, no período de 1989 a 1998 (nove anos), perdeu 5,3% de sua importância na formação do PIB brasileiro” (8).

Chegamos, assim, a uma situação em que os setores hegemônicos da economia brasileira, o financeiro e o industrial, já não são majoritariamente brasileiros. As consequências econômicas e políticas para o país são sérias. Primeiro porque as remessas de lucros e dividendos para o exterior aumentam assustadoramente, ameaçando seriamente nossas contas externas. Segundo porque a capacidade de a Nação tomar decisões soberanas sobre seus problemas fundamentais deixou de existir.

A responsabilidade das classes dominantes brasileiras pela situação que se criou é grande. Elas sempre foram avessas a qualquer distribuição de renda e sempre viram nosso povo com desprezo. Mas, até para aumentar seus lucros, no passado, tratavam, em certa medida, dos interesses do Brasil. Agora, isto mudou. As classes dominantes brasileiras não demonstram qualquer confiança no futuro independente da Nação e, salvo exceções, abriram mão de um Projeto nacional para o país. Os componentes dessas classes, que têm o poder de tomar decisões sobre o Brasil, em geral, não são brasileiros, moram, alguns, transitoriamente no Brasil. O governo federal se adaptou a essa situação e assumiu um novo papel, o de títere do capital estrangeiro nas terras brasileiras. O neoliberalismo nos conduziu a um neocolonialismo. Os comunistas, contudo, não perderam sua confiança no Brasil, nem no futuro luminoso a que chegará, apesar de tudo, a Nação brasileira. Por isto, a mudança de rumo que propõem para o Brasil neste 10º Congresso, é uma enérgica convocação a todos os que acreditam neste país e em seu povo, para que juntos restauremos a dignidade perdida e levantemos bem alto o ideal da Nação brasileira.

 

Notas

(1) Cnf, a propósito, a Introdução a O esfacelamento da Nação, de BAUTISTA

VIDAL, J. W., p. 33.

(2) Cnf. Desestatização, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, IPEA, 1994.

(3) Idem. Ibidem, p. 63.

(4) Idem. Ibidem, p. 191.

(5) Exame, Maiores e melhores. 2001. Ver também Paulo Nogueira Batista Jr., 15.07.1999.

(6) Cnf. BATISTA JR., Paulo Nogueira, 15.07.99.

(7) A burguesia joga a toalha, Edmilson Costa, Doutor em Economia pela Unicamp, 2001. Exame,

Maiores e melhores. 2001.

(8) COMPARATO, Fábio Konder, A desnacionalização da economia brasileira e suas consequências

políticas. Sítio do Instituto dos Advogados do Brasil.

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